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Eu, também

Canto, pois na vida há tanta dor,

e, após a morte, nenhum lado de lá.

Que importa se não sou bem um tenor,

e viver é todo dia parir uma clave de fá?

 

Haveria afinal alguma razão pra viver?

Bom, disto sempre, e muito, duvido.

Mas eu canto, e mal, e aviso a você

em semitom que meu dó é sustenido

 

Canto então aqui a dissonante melodia.

O ritmo sincopado de existir mais um dia,

e o bemol em meu si solfeja bem meu cansaço.

 

Canto assim, cada vez mais à capella,

em belicoso contraponto a uma vida não-bela,

e aguardo ansioso pelo derradeiro compasso.

Eu sou de lua, eu sou de sol, sou minhoca no anzol.
Exultante e infeliz, badalhoca de nariz.
Nesta vida um clandestino, como um verme no intestino.
Sou agora, sou na minha, eu sou fora da casinha.
Acho e perco meu igual, sou sensível e sou boçal,
eu sou sangue menstrual !

Eu sou fezes, eu sou pum, venho de lugar algum.
Sou segredo, sou idéia, surjo como a diarréia.
Um devoto da procura, dôo como a assadura.
Sou um deus enraivecido, meu destino eu decido.
Sou a mosca do cocô do cavalo do bandido!

Revirando toda a bosta, meto o dedo onde há ferida.
Curioso contumaz, viciado em descobrir.
Enquanto busco a resposta, perco o bonde da vida.
Mas que diferença faz, e o que é que eu faço aqui ?

Impulsivo e hesitante, vivo a me lembrar do antes.
Corajoso e cagão, o meu gozo é dizer não.
Descontente demais, vou em frente, volto atrás.
Muito exijo, pouco enfrento, eu sou mijo e corrimento.

E arranho com a unha cada alma em minha frente.
Com meu verbo eu transmuto todo o mundo ao meu redor.
Nunca sai como eu supunha, perco a calma com esta gente.
É a vida, é meu luto, sempre um pouco mais pior.

Violento por vias venéreas o que vejo cinzento,
comemoro a cor que se faz e limpo o pau na cortina.
O vermelho vivaz colorindo o banal, ou assim tento.
Mas é tudo amarelo demais, fico sempre pra trás, isto nunca termina.

Este mundo tão pequeno com meu cuspe enveneno.
Claudicando, sempre errante, vou em busca de um sentido.
Desta vida tiro um sarro, cuspo nela meu catarro.
E queixar-me é constante do azar de ter nascido.

Sou sozinho, sou estranho, não pertenço ao rebanho.
Meu caminho, uma corrida, torna ao ponto de partida.
Me nauseia tanto andar e jamais sair do lugar.
A cadeia impõe seu preço, que é voltar sempre ao começo.
Atrás não resta e adiante me espera só mais desta bocejante quimera.

Tracionado por extremos, em pleno cabo de guerra.
Tão distante e tão igual a quem já fui no passado.
Por um lado, se vivemos, e a vida não se encerra,
adiante vou por outro, um aborto em si abortado.
O tédio é tanto em uma vida inteira...
Eu sou santo e exu-caveira.

Minha nave espacial pousou na lata de lixo.
Me chamaram de Aderbal, meio assim como a um bicho.
Condenado a viver anos, camuflado entre os humanos.
E apesar do esforço que faço, eu bem sei, vim lá do espaço.
Vou-me embora, ando a esmo, tatu-bola de mim mesmo.

Meu passado me intriga, o presente enfastia, o futuro apavora.
Pode ser que eu consiga quem sabe algum dia mais paz do que tenho agora.
Meio como um artista no cio, curto bem as personas que crio.
E todas juntas não dizem metade deste ser que é quem sou na verdade.

Sou enigma envolto em mistério, pista falsa embutida em engodo.
Ilusão levada a sério, parte tida pelo todo.
Sou questão e a resposta inexiste, a charada como despiste.
Sou miragem ambulante, e a vida se vai tão distante.
E já nada mais me atinge em meu modo de esfinge.

Sou macumba, sou magia, sou o pão de cada dia.
Sou o cravo, sou a cruz, pelas chagas purgo pus.
Sou a hóstia da igreja e a farofa do despacho.
A saída à francesa, o buraco mais embaixo.
Tenho o vírus da vida nas veias, trago a marca da besta na testa.
Cicatrizes na alma, tão feias, dores vagas são o que me resta.

Se a vida é uma doença, sua cura é a inexistência.
Após a pena consumada, retornar ao grande nada.
Mas a dor não é pequena, até que saiamos de cena.
Vejo a vida mais como um castigo, eu sou fel e flunfa de umbigo.

Muitos entes me frequentam, dois opostos me habitam.
Diferentes, se enfrentam, e com tantas vozes gritam.
Para cada, um dialeto, muito berro, pouco afeto.
Todo novo dia um decibel, cacofonia na minha babel.
E tanto faz em que língua, afinal, dizem tudo sempre tão igual.

Peregrino perpétuo em busca do brilho,
perseguindo perene a pura presença.
A aposta muito alta, recusando qualquer falta, ter a vida tão intensa,
dobro ou nada a cada jogada, até quando enfim descarrilho.
Tenho abraço de água-viva, e percevejos na saliva.

Meu dragão jamais se acalma, sopra lepra em minha alma.
Insistente, me infesta, então nada nela resta, só hemorragia e pus.
Com seus dentes a perfura,e através desta abertura

sangra a mais sombria luz.
Bruxuleia, faz-me frágil, cobra bem o seu pedágio,
mostra o custo de estar vivo, e o preço é extorsivo.

Fracassado detetive, pois a indagação sobrevive:
Não saber, por mais que eu tente, se este é meu lugar ou não,
assombrado pela sina de apostar na escuridão.
Até ser cremado, finalmente, ou repousar num caixão.
Mas o legado jamais termina, e não tem nome o meu dragão.

Morro um pouco a cada dia, mas ainda há tanto a morrer.
Penso então que bom seria o quando deixar de ser.
Só a juventude passa, e não passo a defunto jamais.
E se é que já pude ver graça, foi num espaço muito tempo atrás.
Estendo as mãos, só toco vento, sem emoção, vão movimento.
Vou vagando por aqui, meu destino é ser zumbi.

O espirro e o esporro, o engulho e a gozada.
O soluço e o sorriso, a ereção não consumada.
Sou o lenço e sou o ranho, não pertenço, sou estranho
Sou intenso e aberrante, eu sou tudo e não sou nada !

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